20090226

o barbeiro e a psicanalista


semanas e semanas a fio, sem um dia de descanso. as tarefas perfilam-se, acumulam-se e agigantam-se num carrocel em espiral.
as palavras de dentro esperam em vão. o coração afoga-se em inquietações sem nome, e em vão tenta protestar.
















enquanto políticos, automobilistas, amigos, e família se entrelaçam num bolo indigesto e sereno de desorientação social e emocional, enquanto todos parecemos empurrar uma sociedade inteira para as inumeras e vorazes bocas invisíveis, enquanto cidades inteiras e aldeias globais esperneiam eficazmente dentro de uma montanhosa sepultura de açucar derretido,
o barbeiro e a psicanalista fazem o seu trabalho pausadamente.

impedem-me por mais umas semanas de me tornar um bicho surdo-mudo cabeludo com os olhos vivos nos farrapos de floresta que ainda resta.


20090220

The Masquerade



Vamos celebrar A estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja De assassinos Cobardes, estupradores e ladrões...

Vamos celebrar A estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso estado que não é nação...

Celebrar a juventude sem escolas
As crianças mortas
Celebrar nossa desunião...

Vamos celebrar Eros e Thanatos
Persephone e Hades
Vamos celebrar nossa tristeza
Vamos celebrar nossa vaidade...

Vamos comemorar como idiotas
A cada fevereiro e feriado
Todos os mortos nas estradas
Os mortos por falta De hospitais...

Vamos celebrar nossa justiça
A ganância e a difamação
Vamos celebrar os preconceitos
O voto dos analfabetos
Comemorar a água podre
E todos os impostos
Queimadas, mentiras
E seqüestros...

Nosso castelo De cartas marcadas
O trabalho escravo
Nosso pequeno universo
Toda a hipocrisia e toda a afectação
Todo roubo e toda indiferença
Vamos celebrar epidemias
É a festa da torcida campeã...

Vamos celebrar a fome
Não ter a quem ouvir
Não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar o coração...

Vamos celebrar nossa bandeira
Nosso passado
De absurdos gloriosos
Tudo que é gratuito e feio
Tudo o que é normal
Vamos cantar juntos O hino nacional
A lágrima é verdadeira
Vamos celebrar nossa saudade
Comemorar a nossa solidão...

Vamos festejar a inveja
A intolerância
A incompreensão
Vamos festejar a violência
E esquecer a nossa gente Que trabalhou honestamente A vida inteira
E agora não tem mais Direito a nada...

Vamos celebrar a aberração De toda a nossa falta De bom senso
Nosso descaso por educação
Vamos celebrar o horror De tudo isto Com festa, velório e caixão
está tudo morto e enterrado agora
Já que também podemos celebrar A estupidez de quem cantou Esta canção...

Venha!
Meu coração está com pressa
Quando a esperança está dispersa Só a verdade me liberta
Chega de maldade e ilusão
Venha!
O amor tem sempre a porta aberta
E vem chegando a primavera
Nosso futuro recomeça
Venha!
Que o que vem é Perfeição!...



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texto: "Perfeição", Legião Urbana
imagens: Jason Stillman "The Masquerade"

20090216

A proposito de Rio J (II)

Quando ela me convidou para passar o ano na casa de Ipanema, o meu sentimento foi um misto de excitação, medo, esperança e cansaço. Tenho medo do Rio, uma vez quase fui morto com uma garrafa partida, roubado e tive de encomendar a alma ao céu. Excitação pela selva e a urbe e a euforia. O Rio é uma selva urbana, e uma selva selvagem. A Mata atlântica envolve ainda as enormes pedras onde o exercito está à mercê dos mesmos perigos que os primeiros europeus, e a nata da civilização acomoda-se até onde pode nas reentrâncias do primitivo e selvagem. A desigualdade social é vertiginosa, e a sociedade está em ebulição. Nunca o casamento do paraíso e do inferno foi uma parábola tão bem utilizada para vestir uma cidade. O casamento disfuncional, acrescente-se...



Como eu irei dizer agora, esta história será o resultado de uma visão gradual - há dois anos e meio venho aos poucos descobrindo os porquês. É a visão da iminência de. De quê? Quem sabe se mais tarde saberei. Como que estou escrevendo na hora mesma em que sou lido. Só não inicio pelo fim que justificaria o começo - como a morte parece dizer sobre a vida - porque preciso de registar os factos antecedentes.
Escrevo neste instante com algum prévio pudor por vos estar invadindo com tal narrativa tão exterior e explícita. De onde no entanto até sangue arfante de tão vivo de vida poderá quem sabe escorrer e logo se coagular em cubos de geleia trémula. Será essa história um dia o meu coágulo? Que sei eu. Se há veracidade nela, e é claro que a história é verdadeira embora inventada - que cada um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um
e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa do que o ouro - existe a quem falte o delicado essencial.
Como é que eu sei tudo o que se vai seguir e que ainda o desconheço, já que nunca o vivi? É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça [...] ***







































































[...] Talvez que a enorme Coisa sofra na intimidade das suas fibras, mas não se compadece nem de si nem daqueles que reduz à congelada expectação [...]
Mas a Coisa interceptante não se resolve. Barra o caminho e medita, obscura *


































É sempre no passado aquele orgasmo, é sempre no presente aquele duplo, é sempre no futuro aquele pânico. É sempre no meu peito aquela garra. É sempre no meu tédio aquele aceno. É sempre no meu sono aquela guerra. É sempre no meu trato o amplo distrato. Sempre na minha firma a antiga fúria. Sempre no mesmo engano outro retrato. É sempre nos meus pulos o limite. É sempre nos meus lábios a estampilha. É sempre no meu não aquele trauma. Sempre no meu amor a noite rompe. Sempre dentro de mim meu inimigo. E sempre no meu sempre a mesma ausência. **






















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Fotos:
0.0 e Nana
Textos:
Carlos Drummond de Andrade * O Enigma; ** O Enterrado Vivo
Clarice Lispector *** A Hora da Estrela


20090214

The anniversary of someone that I used to be

.


She sends me my blue valentines To remind me of my cardinal sin. I can never wash the guilt Or get these bloodstains off my hands. And it takes a lot of whiskey To make this nightmares go away. And I cut my bleedin heart out every nite And I die a little more on each St. Valentines day. Remember that I promised I would Write you...*




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* in "Blue Valentines", Tom Waits