20091231

In Transit













You have let me live one more year
sometimes I fell it is a blessing
sometimes I fell it is a curse.




























O último dia do ano não é o último dia do tempo. Outros dias virão e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida. Beijarás bocas, rasgarás papéis, farás viagens e tantas celebrações de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral, que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor, os irreparáveis uivos do lobo, na solidão.

O último dia do tempo não é o último dia de tudo. Fica sempre uma franja de vida onde se sentam dois homens. Um homem e seu contrário, uma mulher e seu pé, um corpo e sua memória, um olho e seu brilho, uma voz e seu eco, e quem sabe até se Deus... Recebe com simplicidade este presente do acaso. Mereceste viver mais um ano. Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos. Teu pai morreu, teu avô também. Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte, mas estás vivo.

Ainda uma vez estás vivo, e de copo na mão esperas amanhecer. O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito, o recurso da bola colorida, o recurso de Kant e da poesia, todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano. As coisas estão limpas, ordenadas. O corpo gasto renova-se em espuma. Todos os sentidos alerta funcionam. A boca está comendo vida. A boca está entupida de vida. A vida escorre da boca, lambuza as mãos, a calçada. A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.*











* Carlos Drummond de Andrade. "O último dia do ano"

20091224

Solstício de Inverno. Natalis Domini. Christ's Mass. Yule Goat. & the Deer Goddess (II)










































O Solstício de Inverno é o ponto em que a elíptica do Sol atinge a posição mínima de altura em relação ao equador.
Era conhecido como o “nascimento do sol” desde a era mais remota e festejado por todos os povos no hemisfério norte.
Este acontecimento astronómico era muito importante visto marcar o início do novo ciclo do Sol sobre a Terra, com dias cada vez maiores e mais quentes até ao novo retorno.
A esta data associavam-se rituais ou festas muito importantes. As civilizações mais antigas consideravam o Sol como sendo o filho da luz, a luz para eles representava Deus em vida.*











































Uma vez que permitiam controlar a reprodução dos animais, a plantação de sementeiras e avaliar as reservas invernais de alimentos entre as colheitas, certos eventos astronómicos estão associados ao surgimento de mitologias e tradições desde tempos remotos .
Na noite do solstício de inverno, no hemisfério norte, as três estrelas da cintura de Orion alinham-se com Sirius, a estrela mais brilhante a oriente no céu, assinalando o sítio onde o sol nascerá na manhã após o solstício de Inverno. Após este solstício o sol começa a sua ascenção a norte.**



















O Solstício de Inverno terá sido imensamente importante porque as comunidades não tinham a certeza de sobreviver ao Inverno, e para ele tinham de se preparar durante os 9 meses do ano. Morrer de fome era comum entre os meses de Janeiro e Abril.
Nas culturas modernas os rituais do solstício de inverno são valorizadas pelo seu consolo emocional na altura mais escura do ano, sobretudo nas culturas mais a norte do hemosfério. Os efeitos depressivos do inverno nos individuos e na sociedade estão ligados ao frio, cansaço, mal-estar interior e inactividade.
A insuficiente exposição à luz do sol aumenta a secreção de melatonina pelo corpo, desregulando o ritmo circadiano e aumentando a sonolência e as horas de sono. Os festivais deste período do ano sempre utilizaram grandes fogueiras, iluminações, canticos e danças, desde os primordios da civilização.**














































Nesta altura do ano, eram feitas matanças da maior parte do gado, para que este não tivesse de ser alimentado durante o resto do inverno, e era portanto a altura em que existia abundância de carne fresca. O vinho e cerveja tinham estado a fermentar e estavam prontos para ser bebidos.

A Cabra Yule, ou "Yule Goat" é uma destas tradições escandinavas e norte-europeias mais antigas; as suas origens são pré-cristãs, e segundo as lendas o deus Thor era conduzido pelos céus por duas cabras. Nessa festa da Yule era morta uma cabra, e cantavam-se canções porta-a-porta para receber comida e bebidas em troca. Na Finlândia era dito que a cabra Yule era uma criatura que assustava as crianças e exigia presentes. Durante o século 19 tornara-se a criatura invisível que dava os presentes, e um dos homens da família mascarava-se de cabra para os trazer.**












O Natalis Domini, desde o século 4º em Roma, que em em Inglaterra desde o século 11 se denominou Christ's Mass (Christmass, a Missa de Cristo) , tornou-se uma celebração do nascimento do deus feito carne, o Messias Yeshua de Nazaré. O seu nascimento foi estabelecido no dia do Solstício de Inverno segundo o calendário Juliano, ou seja a 25 de Dezembro. **









...


Desde tempos perdidos na idade do gelo, em que as tribos e clãs tentaram perceber os ritmos das estações, daquilo a que chamaram deuses sol e lua, para não morrer de fome durante o inverno, até ao frenesim dos centros comerciais e das canções minimais repetitivas de natal,
passando pelo nascimento do filho do deus solar do deserto da palestina que os romanos decidiram fazer nascer a 25 de dezembro no século 4 para coincidir com o solstício do calendário oficial do império, pelas tradições nórdicas da cabra Yule, que estranhamente se combinaram com adoração do cordeiro de deus...,

afinal não deixámos de ser o que sempre fomos,
criaturas da terra,
criadores de contos e de deuses,
adoradores e devoradores de animais sagrados,
comunidades espalhadas de norte a sul pelos hemisférios da superfície de uma esfera
de coração incandescente rodando pelos céus
ao "deus dará" .













Triste sina a de estarmos sob o jugo de um pseudo-simpático e obeso velho idiota que se enfrasca de coca-cola e que dá presentes às crianças ricas só se elas se portarem "bem". Sob o testemunho mudo de árvores de plástico com lixo colorido pendurado, debaixo das quais se acumulam as prendas: os despojos de amor condicional e da paz apodrecida dos não-ditos gritantes, embrulhados em pasta de árvores verdadeiras desbastadas para tão pouco nobre fim.

De estarmos sob o paradigma de um trenó de renas presas num arnês;

não nos esqueçamos das lendas em que as renas era deusas, as cabras conduziam Thor,
e o filho do sol feito carne não estava crucificado
no calendário fixado pelos senadores corruptos de Roma e das pequenas "Romas" desse mundo, e beatificado pelos bispos votados à pseudo-abstinência sexual do Vaticano e dos pequenos vaticanos desse mundo...
















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* in Observatório Astronómico de Lisboa. http://www.oal.ul.pt/index.php?link=destaque&id=94
** in Wikipédia, tradução para português por eu versão 0.04
Imagens:
1)Esculturas de Ron Mueck
2)"Folktale of Father Christmas riding a yule goat.."
3)"Tanngrisnir and Tanngnjóstr from Fredrik Sander's 1893 Swedish edition of the Poetic Edda."
4) Adoration of the Lamb. por A. Durer

20091213

Contamos assegurar os serviços mínimos nesta época, através do Navio de Espelhos.








20091210

Tens a coragem e o amor suficiente para tomar um pouco deste veneno?
e ficar ao pé de mim, até eu o ter bebido todo?

Tens a coragem e o amor suficiente para tomar um pouco deste veneno?
Apenas para o provar,
funcionará como uma vacina que outras já tomaram para viver mais.

Compreende que apesar de ser um veneno mortal, é a única coisa que ainda me mantém vivo.









































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20091205

Contacto. Mácula. Imaculada. Concepção.(II)

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O termo contacto não tem contornos definidos, porque o contacto entre os corpos tanto pode ser de ordem sexual como não. O contacto entre corações tanto pode ser de ordem sexual como não o ser. O contacto entre os afectos tanto pode ser de ordem sexual como não o ser. O Contacto transborda do sexo - é por isso que não há uma 'ciência do contacto'; é por isso que o termo contacto é demasiado subjectivo para ser um termo cientifico

Não sei bem do que é que estou a falar quando falo de contacto; os contornos não estão bem definidos; os limites são impossíveis de assinalar. Mas, se estou ao nível da metafísica, da possibilidade de pensar para além dos limites da natureza, não será necessário que os limites sejam impossíveis de assinalar?

[...]

Se falar em sexo oral, anal, genital, ou qualquer outro tipo de sexo, já todos sabemos do que estou a falar. É a delimitação objectivante do discurso ciêntifico. Todos sabemos do que estou a falar porque o sexo é uma coisa física, ao passo que o contacto pode transbordar da fisicalidade. O contacto é metafísico. Como afirma Merleau-Ponty em Phenomenologie de la Perception:

É necessário sem dúvida alguma reconhecer que o pudor, o desejo, o amor em geral, tem uma significação metafísica, isto é, são incompreensíveis se tratarmos o homem como uma máquina governada por leis naturais, ou mesmo como um "feixe de instintos".









O contacto põe-nos no regime da proximidade, da intimidade; faz-nos devir seres fusionais. O contacto é uma coisa 'louca' e brutal, mágica e enfeitiçadora. O que pretendo neste trabalho é reabilitar o contacto, restabelecer o contacto, a confusão, a fusão. Reabilitar o contacto significará em simultâneo, fazer mergulhar o pensamento na problemática do contacto e, aceder ao encanto da problemática, da dinâmica do contacto, da carnalidade. Porque o meu projecto de reabilitação do contacto funda-se num outro projecto de fundo: a abertura para a sensualidade do contacto; a abertura para um corpo, uma carne que fala a linguagem fascinante da sensualidade; a linguagem primitiva dos ritmos do corpo.

[...]

o meu pensamento está fascinado pela ideia de contacto, dos corpos que se tocam e se cheiram e se procuram. O outro é sempre o princípio do contacto e como afirma Jankélévitch em Le Pur et L'impur "a ingerência do outro é o princípio da mancha por excelência". É uma problemática que se inscreve no princípio da ideia de perdição. ***



























Esta Divina prisión del amor en que yo vivo, ha hecho a Dios mi cabtivo y libre my corazón. Y causa en mí tal pasión ver a Dios mi prisionero,
que muero porque no muero.
Ay qué larga es esta vida! qué duros estos destierros! esta carcel, estos hierros, en que el alma está metida! Sólo esperar la salida me causa dolor tan fiero,
que muero porque no muero.

****


















the method we speak of alone permits us to go beyond ..., to affirm the existence of objects inferior and superior (though in a certain sense interior) to us, to make them coexist togheter
[...]

As I probe more deeply into its essence, this unity will appear to me as some immobile substractum of that which is moving, as some intemporal essence of time; it is this that I shall call eternity; an eternity of death [...]

It is quite otherwise if we place ourselves from the first, by an effort of intuition, in the concrete flow of duration..., far from leaving us suspended in the void as pure analysis would do, brings us into contact with a whole continuity which we must try to follow, whether downwards or upwards;
in both cases we extend ourselves indefinitely by an increasing violent effort, in both cases we transcend ourselves. [...]

No longer conceptual eternity, which is an eternity of death, but an eternity of life. A living and therefore still moving eternity in which our own particular duration would be included as the vibrations are in light; an eternity which would be the concentration of all durations.

Between these two extreme limits intuition moves, and this movement is the very essence of metaphysics
**






































ouvi o teu cheiro no silêncio, numa catedral de medo quente, profanada pelo sangue que os mortos santificam. respirei os últimos suspiros da tua sinfonia, o teu amor rasgou-me os dedos, nessa noite solarenga as pregas do teu ventre sugavam aves , bandos de homens, as tuas raízes perfuravam camadas infinitas de livros e fogueiras. nadei-te sombra, beijaste-me os joelhos, antes dos alfabetos. sou aquele que não desiste de nascer de novo.
um dia, acabada de forjar a armadura de vitrais, levarei palavras em aquários para dar de beber ao teu útero violentado pela métrica dos impérios.
quando me render ao intervalo dos séculos que o meu corpo abriu.






















Ma...
comeste um deus do deserto
com a boca do corpo?




"Sim. Mas a versão oficial é que Ele era alado e dócil como uma pomba, e me regou a língua com agua-ardente, quando me escolheu e violou"


E a versão verdadeira?


"desceu sobre mim do céu e da terra ao mesmo tempo como uma língua de fogo que me incendiou o espírito e transbordou o corpo. comeu-me de tal maneira divina
que a minha entrega rendida
restabeleceu nesse instante o poder da fêmea ancestral"


geraste um messias, um homem,
concebido sem te teres manchado, sem a mancha de sangue, imaculada, o que quer dizer que já não eras virgem.


"a versão oficial é de que imaculada ficou a alma,
Não deixei mancha nas ervas sim,
mas sobretudo falam de alma imaculada porque eu Era numa rapariga inocente, e o deus também estava inocente. o projecto não era gerar mais uma criatura, era gerar um salvador
de criaturas"


e a versão verdadeira?


"se algum significado para além dos rebanhos de cabras e ovelhas que os patriarcas possuem existe na virgindade para os donos das mulheres, posso-te dizer que foi
a partir desse dia que fiquei Virgem .


A foda da tua vida, portanto?


"Não, não foi a foda da minha vida, nem sequer a foda do século, nem mesmo a foda do milénio. Foi uma foda eterna.
Ainda hoje e sempre me venho, e choro, sem fim."


o que aconteceu?


"torturaram e mataram o meu filho, coroaram-me rainha de criaturas que não existem e de territórios etéreos fora de alcance, quiseram reproduzir-me em construções de pedra, e encenam dentro do símbolo de mim mesma sua mãe o seu suplício e tortura. diariamente. bebem o seu sangue e comem o seu corpo, num ritual grotesco que lhes promete a vida eterna.
foi o plano que arranjaram para anular a libertação das criaturas planeada pelo deus do deserto contra o império."

...


"e tu? sabes que poderias ser queimado em praça publica por me fazeres essas perguntas."


sim, eu sei. estou a arder por dentro à muito tempo.




















The definitions of metaphysics and the various concepts of the absolute leads to the discovery that philosophers agree in distinguishing two profoundly different ways of knowing a thing.

The first implies that we move round the object; the second that we enter into it.

The first knowledge may be said to stop at the relative; the second, in those cases where it is possible, to attain the absolute.**














Em 754, o imperador Constantino V
estipulou o culto obrigatório
de Maria
e proibiu a entrada
ao céu
de todo aquele
"que não reconheça
que a eterna e sagrada Virgem
é sincera e justamente a mãe de Deus,
superior a qualquer criatura visível ou invisível
e que com sincera fé não busque sua interseção
como alguém que confia em seu acesso a Deus".

São Anselmo
de Canterbury
(1033-1109)
descreveu a Maria com as mesmas palavras
com as que havia definido
a uma Deusa
da natureza *





Aquilo que pretendo afirmar aqui é que o acto de pensar não é algo de descomprometido, algo de descarnado, muito pelo contrário, o pensar pensa-se no meu corpo, na minha carne, com toda a inquietação, com toda a perturbação que isso possa significar. Ao pensar a questão do limite do pensar filosófico, permitirei, abrirei a possibilidade de o meu corpo se pensar em mim [...] ***









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* http://www.rosanevolpatto.trd.br/deusamaria.html
** Henri Bergson: "An Introduction to Metaphysics"
*** Maria João Ceitil: "Pôr o corpo a pensar"
**** Teresa de Ávila "Vivo sin vivir en mi"

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"poderás ser excomungado e acusado de heresia e blasfémia..."


No domínio ecclesiástico não. Não pertenço à Igreja, nunca fui baptizado. Faço o caminho da floresta, sou uma "creature of the wind".

No domínio secular, existem atenuantes... o meu advogado poderá argumentar que sou um poeta possesso...em delírio... não poderão condenar-me a mais do que um tratamento re-educativo pelos ortopedistas do pensamento.

20091203













She uttered the spell with the magical power of her mouth.
Her tongue was perfect, and it never halted at a word.
Beneficent in command and word was Isis, the woman of magical spells, the advocate of her brother

































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Fotos: peros bravos
Texto: de "Hymn To Osiris"