20081002

The devil's daughters. Iniciação

Para cada homem provavelmente haveria um certo momento não identificável em que teria havido mais do que farejar...Em que as pedras teriam aberto o seu coração de pedra e os bichos teriam aberto o seu segredo de carne e os homens não teriam sido "os outros", teriam sido "nós", e o mundo teria sido um vislumbre que se reconhece como se se tivesse sonhado com ele; para cada homem teria havido aquele momento não identificável em que se teria aceite mesmo a monstruosa paciência de Deus?
[..]
E esse homem, com o grande respeito do medo diria "sim", mesmo sabendo com vergonha que este seria o seu maior crime talvez: porque havia uma falta essencial de direito de achar tudo isso belo e fatal, havia uma falta essencial de direito de um homem se agregar à divindade - até que ponto um homem tinha o direito de ser divino e dizer sim?
[...]
Atingido o nó incompreensível do sonho, aceitava-se este grande absurdo: que o mistério é a salvação (1)



Recomeçou a chover.
Os pingos escorriam dos ramos, batiam com delicadeza nas folhas e espalhavam-se pela vastidão do campo. Um relâmpago verde revelou em relance a altura insuspeita do céu. Outro clarão pôs uma àrvore antes invisível de súbito ao seu alcance. E para o abismo rolavam os trovões.
"Eu" - disse a mulher velha - "eu sou a rainha da natureza".

[...]

E como se nessa noite a mulher tivesse sido envolvida por inúmeras camadas de pesadelo e cada vez que se libertasse de uma delas pensasse erradamente ter chegado à última - só que agora estava inteiramente acordada do sonho.

[...]

Ninguém no mundo sabia que estave ali. E ninguém saberia jamais.

[...]

- "Ninguém no mundo jamais saberia" - o que alargou de repente a grande escuridão do campo e a mulher ficou perdida nele, nela, a trémula rainha da natureza.

Esse pensamento de segredo completo de que só a chuva partilhava deu-lhe prazer como se ela enfim tivesse feito algo além das suas forças humanas.

Estremeceu de alegria.

Com o vento molhado a noite bateu-lhe dura no rosto - a senhora recebeu com delícia o desconhecido pacto.
(1)




















Erros meus, má fortuna, amor ardente Em minha perdição se conjuraram; Os erros e a fortuna sobejaram, Que para mim bastava amor somente. Tudo passei; mas tenho tão presente A grande dor das cousas que passaram, Que as magoadas iras me ensinaram A não querer já nunca ser contente. Errei todo o discurso de meus anos; Dei causa [a] que a Fortuna castigasse As minhas mal fundadas esperanças. De amor não vi senão breves enganos. Oh! quem tanto pudesse, que fartasse Este meu duro Génio de vinganças!(9)






















Trapped in purgatory A lifeless object alive Awaiting reprisal. Death will be their acquisition. The sky is turning red. Return to power draws near Fall into me, the sky's crimson tears Abolish the rules made of stone, Pierced from below, souls of my treacherous past Betrayed by many, now ornaments dripping above Awaiting the hour of reprisal. Your time slips away Raining blood From a lacerated sky, Bleeding its horror, Creating my structure. Now I shall reign in blood (8)










Diz o Mago HH que




"Um [...] cresce inseguramente na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras,
só ferocidade e gosto,
talvez como sangue ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo.
Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis do nosso amor,
os rios,
a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio, as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.

E já nenhum poder destrói o [...].
Insustentável, único,
invade as órbitas,
a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

Em baixo o instrumento perplexo ignora a espinha do mistério.
E o [...] faz-se contra o tempo e a carne
."

Perdi o nome que o Mago deu a Isso, isso "que sobe ainda sem palavras". Deitei esse nome ao rio e o rio deitou-se ao mar. Escondi-o dentro do caos secreto dos oceanos de modo a poder usar a fórmula mágica, com que o Mago invocou
Isso, para fazer rodar outras coisas. Para que pudesse acordar o mecanismo daquela semente que adormeceu engolida pelo teu desaparecimento dentro de ti-mesmo/a. Para que Isso possa subir por ti na miséria dos minutos e na mais escura manhã lavar o teu/meu rosto-espelho.

Para que a invocação possa estancar os milénios, que escorrem pela brecha aberta, a cada segundo.

Fomos arrastados na enxurrada, não por lama de eternidade, mas por todas as abóbadas de almas que um dia foram surpreendidas pelo ruir dos castelos aéreos, por todos os desejos aprisionados dentro das bolhas do futuro rebentando numa aurora de gritos,
fomos sugados pelo sopro assustado de todos os corpos que um dia acordaram imediatamente antes da morte.

Depois de termos desencaixado as ideologias, corremos pelas mitologias com fome. Mas "aqui" já não estamos a falar a linguagem das mitologias. Entramo-nos dentro dos mitos e estamos húmidos deles.
Estamos a falar a linguagem que dá forma à forma abstracta das coisas, das coisas como um punhal de ternura cravado com ódio no ódio do Filho,
ou da atracção que o calor, perdido pelo sangue que banha os músculos da mão, exerce sobre a intenção de acariciar com horror a Filha.

Já não estamos a invocar demónios ou deuses, estamos a ser falados pelas energias que os animam.
Estivemos sempre perdidos, nada temos a perder, é o que estamos a Aprender de novo.
uma criatura nocturna em asfixia sente o ar da manhã como um sopro de amor,
como uma iniciação(3)





























I was born in the desert, I been down for years, Jesus, come closer, I think my time is near. And I've traveled over Dry earth and floods, Hell and high water To bring you my love. Climbed over mountains, Travelled the sea, Cast down off heaven, Cast down on my knees. I've laid with the devil, Cursed god above, Forsaken heaven To bring you my love.









I've laid with the devil

Cursed god above
Forsaken heaven
To bring you my love
Forsaken heaven
Cursed god above
Lay with the devil
Bring you my love (7)







Well, a girl is coming to you, Gonna show you what is true. The witch, she need a lover boy, Maybe it could be you. It took a while to understand, Stole the needs of another man. Push your sex on a mortal man. And the witch is coming for you (6)








"Na criação de Blodeuwedd, de Pandora e de Lilith é preciso ver o símbolo da grande viragem que teve lugar num período incerto da antiguidade ou da pré-história: o culto do deus-pai substitui o da deusa-mãe".





Pandora é obra de prometeu, o ladrão do fogo celeste, e é da sua caixa que sairão todos os males que vão afligir a humanidade. Lilith é a primeira mulher feita de argila por Iavé como Adão, e que será expulsa pelo Deus de Israel porque se revolta contra o primeiro homem, para ser substituída pela doce Eva, tirada da costela do seu marido. Os dois mágicos que fabricam Blodeuwedd fazem-no para não ter de se servir de uma mulher com perspectivas de uma nova vida [...]


De princípio muitos destes contos parecem extraordináriamente obscuros e a prática das interpretações analíticas é uma via e de que se deve desconfiar na medida em que conduz a maioria das vezes à tradição dos Pais, entre os quais se inclui Freud, como um Doutor desta Igreja que é o patriarcado falocrático. Levando mais longe o estudo do sagrado e o conhecimento histórico, a pouco e pouco podem ver-se esclarecidos muitos enigmas. Entre todas as culturas a celta é prodigiosamente rica em revelações sobre a luta dos sexos que durante tanto tempo foi ocultada e negada pela vitória masculina. (5)





Toda a repugnante misoginia do cristianismo não será demasiada para conseguir vencer esta fascinação erótica e intelectual que o Feminino exerce nos Celtas, e que conduz a uma verdadeira temática metafísica. Alguns contos ilustram-no de forma encantadora: é Bran que segue a rapariga para além dos mares com o seu ramo de macieira; é Condlé o Vermelho na Irlanda que segue uma fada, numa nave de cristal, para a "Terra prometida onde apenas habitam mulheres", apesar dos esforços do Druída para o reter; são as Raparigas do Tréguier "Tão encantadoras

como espelhos de prata / No entanto nenhuma cumpria a lei / como uma que era prostituta".
É o jovem Efflam na Bretanha armórica que é enviado pelo pai numa missão científica: deve saber porque é que o sol da manhã é rosado! Ainda na Bretanha armórica, as Margot-la-fée guardam em cavernas homens que ali se sentem tão felizes que esquecem tudo o resto, como o cavaleiro do Jardim Encantado de Armide; de igual modo a órfã Brunisse na Ocitânia recebe Jaufré, livre do encantamento da "casa dos leprosos", num pomar "todo cercado de mármore" cujas àrvores, pássaros e flores fazem pensar no paraíso.





Na versão Alemã de Tristão e Isolda, os amantes escapam à vingança do rei Marco e à fogueira para encontrar, numa gruta construída por gigantes, o leito de cristal onde se deitarão. Loégairé na Irlanda, filho de rei, é conduzido por um cavaleiro nascido do nevoeiro para o "país feérico" onde obtém a mão da bela Der Graine, que o guarda um ano antes de o autorizar a voltar a montar a cavalo.

Em todas estas narrativas as mulheres são belas e poderosas, possuem uma ciência misteriosa e são em geral benfeitoras e pacíficas. Em todos os casos a região das mulheres é sempre paradisíaca e o cativeiro, quando existe, é suave e bem aceite pelo amante. [...]
O que Jean Markale chama de um tão belo modo "a revolta da Rapariga-Flor" é em face dos ultrajes que as mulheres celtas, até há pouco tão livres e poderosas, sofreram por parte da religião nova. [...]
É o aviltamento absoluto da antiga divindade: a rainha é "atirada para a pocilga", faz-se dela uma javalina, uma porca, e o seu amor é só imundice. Para os dois apóstolos trata-se substituir o pomar florido das Imortais pela pocilga mais infecta e de votar o amante de ontem, o jovem iniciado maravilhado, à angústia necessária à salvação. Traduzamos: à insatisfação sexual necessária à sociedade moderna, necessária à produtividade, à exploração do homem pelo homem. (5)





A lua governa as marés e o sol marca as estações. E enquanto bailaram
bombardeei dia e noite o seu monte de Vénus, invoquei o grande magno dos mortos para cercar o Hades com a cavalaria de Bucephalus, e cheguei a imolar-me em folhas de tabaco, enrolado nas mortalhas de múmias, para que se não me fundissem os olhos e os tímpanos de tanto perscrutar a noite escura e os seus hinos.
O inferno somos nós mesmos a arder de fome. (3)





Ardentes filhas do prazer, dizei-me!, vossos sonhos quais são, depois da orgia? Acaso nunca a imagem fugidia do que foste em vós se agita e freme? Noutra vida e outra esfera, aonde geme outro vento, e se acende um outro dia, que corpo tínheis? que matéria fria vossa alma incendiou, com fogo estreme? Vós fostes, nas florestas, bravas feras, arrastando, leoas ou panteras, de dentadas de amor um corpo exangue... Mordei, pois, esta carne palpitante, feras feitas de gaze flutuante...Lobas! leoas! Sim, bebei meu sangue! (4)






[segui os teus passos, quiseste experimentar a minha força e a minha companhia nesse território impossível de mapear.]


O coração simultaneamente uma pedra de carvão e um "balde despejado". nenhum de nós sabe que forças telúricas acordámos nós de novo em nós, nas nossas experiências com fórmulas estranhas de amor, sexo, ódio e invocação.

O mundo sempre foi feito de energias que não controlamos. Mas o nosso entendimento e o nosso desentendimento, num jogo concertado, parecem fazer-nos seguir por um qualquer chão virtual, tão aparentemente real que acreditamos controlar os nossos passos.

Quando nos deparamos com energias tais que o entendimento e o desentendimento não se conseguem concertar, foi porque entrámos num espaço simultaneamente sagrado e amaldiçoado: assombrado, pela negra linfa da própria Luz.

somos atravessados, como ar, por energias que não apenas nos levantam do chão e o colocam por cima de nós: elas volatilizam o chão que nunca lá esteve, e já não seguimos qualquer caminho, não caminhamos, somos caminhados por, não acordamos, somos acordados por.

o coração simultaneamente o mais negro e mais vazio dos sóis,
uma pedra de carvão à espera de um fogo
um balde despejado, pronto a encher-se de... (3)




E só de pensar em quebrar a Proibição, ele recuava, de novo opondo a imaterial resistência de um duro instinto, de novo cauteloso como se houvesse uma palavra que um homem dissesse...Essa palavra ausente que no entanto o sustentava. Que no entanto era ele. Que no entanto era a sua própria energia e o modo como ele respirava. Essa palavra que era a acção e a intenção de um homem. [...] De repente susceptível, caíra em zona sagrada. (1)







































































I must be One of the devil's daughters. They look at me with scorn. Sometimes It's like being in chains, Sometimes I hang my head In chains. When people see me They scandalize my name. I'm going down To the devil's daughter, I'm gonna drown In that troubled water. It's coming round my soul, It's way beyond control. I must be one, I must be one, I must be One of the devil's daughters. (2)



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textos:
(1) in "A Maçã no Escuro", C.L.
(2) "Troubled Waters", Arthur Johnson.
(3) in "Diário de Bordo da Perdição", Zé Elias Nunes.
(4) "Metempsicose", A. Quental.
(5) in "As mulheres antes do Patriarcado", Françoise d'Eaubonne.
(6) in "The Witch", The Cult.
(7) in "To bring you my love", PJ Harvey
(8) in "Raining Blood", Tori Amos
(9) "Erros Meus. Má fortuna. Amor Ardente", Luis de Camões, cantado por A. R.