20081226

! Boas Saídas e Entradas



Isto sabemos. A terra não pertence ao homem; é o homem que pertence à terra. O que ocorrer com a terra, recairá sobre os filhos da terra. O homem não teceu a trama da vida; ele é meramente um de seus fios. [...]
Somos, porém, selvagens. Os sonhos do homem branco são para nós ocultos, e por serem ocultos, temos de escolher nosso próprio caminho*



























De entre as resoluções de ano novo, uma das quais é recomeçar a tocar música,
a mais importante é a de "ver, ouvir e falar".
Ter menos visões e ver mais, tentar reduzir o volume das vozes internas e aumentar o volume do ouvido, e trazer mais palavras de dentro para fora.

Espero sair mais vezes dos mundos inferiores infernais onde tenho estado em explorações iniciáticas.







É no romantismo literário que se torna mais aparente esse esforço sincrético para reintegrar no Bem o Mal e as trevas sob a forma mítica de Satã, o anjo rebelde. O romantismo herda toda a dramatização da literatura bíblica, da iconografia medieval e do Paraíso Perdido de Milton. Satã faz a sua entrada triunfal com o Mefistófoles de Goethe, e com o principal herói Byroniano do Mistério de Caim [...] todas essas obras e esses heróis tenebrosos constituem a epopeia romântica da síntese e da reabilitação mítica do mal. Mas foi Hugo quem, em La Fin de Satã, mais magistralmente exprimiu o sentido do drama sintético, da queda cuja redenção final virá de uma pena perdida pelo anjo das trevas, donde nascerá o "Anjo da Liberdade". Lilith-Ísis, o aspecto tenebroso do mundo derrete-se então "como um pedaço de gelo ao lume"

[...] A integração do negativo não tem somente uma dimensão metafísica, mas pretende também chegar à explicação histórica. Assiste-se, através dos movimentos políticos do século, a uma reabilitação e a uma explicação do escândalo revolucionário [...] Joseph de Maistre, adversário ferrenho da Revolução e do Imperador, acabará por magnificar o papel sagrado desse "imenso zero" [...] O romantismo, obcecado pelo problema do mal, nunca aceitou o dualismo maniqueísta. O seu optimismo profundo é um convite a que seja decretado que o mal há-de acabar.: "Todos, Vigny e Soumet, Enfantin e Proudhon, Esquiros e Eliphas Lévi, e depois deles o poeta de La Fin de Satã, repetiram a mesma antífona:

Satã morreu, renasce ó Lucifer celeste!

Com efeito, neste verso célebre condensa-se toda a vontade sincrética de unificação dos contrários através do drama mítico da morte e do renascimento. Mas o que sobretudo não se deve perder de vista nesta conciliação histórica ou lendária do compromisso é o papel benéfico da felix culpa, e com isso, do tentador de Eva, Satã. A poesia, a história, do mesmo modo que a mitologia ou a religião, não escapam ao grande esquema cíclico da conciliação dos contrários. A repetição temporal, o exorcismo do tempo, tornou-se possível pela mediação dos contrários, e é o mesmo esquema mítico que subentende o optimismo romântico e o ritual lunar das divindades andróginas.
O Simbolismo lunar aparece assim nas suas múltiplas epifanias, como estreitamente ligado à obsessão do tempo e da morte.**









E para começar, para sair um pouco das trevas invernais e da luz lunar da escuridão, vou passar umas semanas ao hemisfério sul, onde agora é o pino do Verão. Deixo-vos com dois poemas. Um do Fausto, um dos nossos bardos maiores, e outro do Drummond, um dos "nossos" poetas maiores:









Lembra-me um sonho lindo quase acabado, lembra-me um céu aberto outro fechado. Estala-me a veia em sangue estrangulada, estoira num peito um grito, à desfilada.

Canta rouxinol canta, não me dês penas, cresce girassol cresce entre açucenas. Afoga-me o corpo todo se te pertenço, rasga-me o vento ardendo em fumos de incenso. Lembra-me um sonho lindo quase acabado, lembra-me um céu aberto outro fechado. Estala-me a veia em sangue estrangulada, estoira num peito um grito, à desfilada.

Ai como eu te quero, de madrugada, alma da terra, linda, assim deitada. Ai como eu te amo, ai tão sossegada, ai beijo-te o corpo, ai seara, tão desejada. ***



O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o
[ calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória,
[ doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o
[ clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do
[ acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos
[ séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras
[ espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.****



_____________________________________________________
*in Manifesto do chefe Seattle.
** Gilbert Durand "As estruturas antropológicas do imaginário".
*** Fausto "Lembra-me um sonho lindo".
****
Carlos Drummond de Andrade. "O último dia do ano"

Estátua: C. Drummond de Andrade em Copacabana

20081220

presente




este natal, o presente é a consciência,

a auto-consciência de todos eles e elas de passagem dentro de mim. em busca de uma conversa, de um aviso, de um afago, de um perdão, de um aceno, de uma cápsula protectora.
a prenda é a visão, menos turva, das montanhas que subimos e descemos. Haviam abrigos, mas não nos demorámos muito, caminhávamos para um porto que nos levaria de novo à casa de origem, que estaria limpa e calma.
como se tivesse tudo começado de novo, mas sem o desespero contido que se acumulava no pó das estantes.

a visão menos turva, para ver os retratos dos vossos olhos assustados e preocupados, gritando nas linhas de fuga das pálpebras, com piedade: "para onde corres desgraçado".
dos vossos olhos intrigados com o relato das terras que estavam para se encontrar.
juntar os pedaços de cada rosto na areia e desenhar o trajecto nas marés.
as enseadas onde a violência do mistério quase fundou a ternura, quase.

A tristeza e a saudade tornaram-se mais do que bagagem, uma caravana, procissão de promessas em construção, mares e mares, dunas. Nunca houve tempo para vos ouvir até aos ossos, na soleira do deserto, na eminência do tufão de lixo, do Carnaval de equívocos.
Partir de novo para a parte branca por detrás dos olhos, refazer a visão, desmantelar as máquinas da injustiça natural. era preciso, mais do que viver.

agarrei a tua mão quando caí esgotado, e depois a tua, e depois a tua. tentei cortá-las e levá-las comigo, devolver-vos-ia as linhas do destino rectificadas. muito mais tarde, devolver-me-ia a vós muito mais tarde, tarde como a manhã.

como seguir um choro sem fim?
antes o borbulhar dos ribeiros nos vales, do que tentar separar o universo em dois e refazer as proporções de deus e caos.

como seguir as labaredas de um desespero a cada dia renovado?
como forjar espadas para cortar com misericórdia as cabeças das hierarquias de arcanjos, e penetrar de uma vez a indigestão do silêncio sem ferir as crias?

enganei tantas vezes, quando falava de amor, falava do Amor, quando falava de filhos falava das Gerações, quando falava de ternura falava da Ternura, quando me deitava contigo ao lado deitava-me apenas ao teu lado. quando te ouvia exercitava o Ouvido, quando fazíamos os nossos planos acrescentava uma adenda ao Plano, quando viajávamos juntos planeava a Viagem. enganei tanto, quando me dava todo dava um caminho para o que havia de ser, quando me entregava entregava uma chave para mais um enigma, quando subia as escadas para a tua casa subia as escadas para uma casa. Quando cozinhava para nós cozinhava para te alimentar, quando dizias que me amavas ouvia que Amavas, recebia de ti o presente que era saber que tinhas Amor,
e não o desembrulhava. Abria um canto, e retirava um pouco para espalhar pomada numa ferida mais urgente.
Tinhas Amor, era do mundo, era para o mundo, para este mundo, e o meu mundo ainda não estava feito.

Enganei tanto, olhei para os amigos em construção como soldados do amor em operações especiais.
Quando estava nos vossos braços, estava nos braços da terra.

Só fui verdadeiro quando chorava, quando vos punha o desespero no ventre.
e quando me entregava à tua fenda para nos dissolvermos no tempo.

Deixei-me fazer prisioneiro perpétuo tantas vezes para por à prova os planos de fuga.
Enganei os sacerdotes, comunguei do livro mas nunca assinei o pacto de distinção entre a morte e a vida.

o meu presente foi o movimento, o encontro com o desencontro, a frota em construção.
as linhas de fuga com que se faz um chão no céu.