20090126

"Seus filhos erravam cegos pelo continente, Erguendo estranhas catedrais" *

As Coisas,
"a enorme Coisa interceptante" de que fala por exemplo Carlos Drummond, as Coisas de um jardim encantado-assombrado de que fala por exemplo Lispector, ou as Coisas inomináveis de que falam por exemplo Machen, Lovecraft, entre muitas outras de que falam muitos outros, vão-se revelando aos poucos no desenrolar de uma vida.

A revelação das coisas a que me estou a referir não se trata de algo como quando alguém abre os lábios para nos revelar um segredo de que não suspeitávamos (ao pequeno almoço depois de pousar a cafeteira de vidro e respirar com o olhar fixo em nós),
em que o sujeito passivo, quando menos espera, vê os céus a abrirem-se e os anjos com trombetas trazendo os sete selos da revelação.

As Coisas de que estou a falar parecem revelar-se de uma forma que é mais semelhante ao processo trabalhoso da fotografia, ou à decifração de textos crípticos. No processo de fazer uma fotografia, o sujeito sai ou entra para um lugar onírico-real, para a rua por exemplo, carregado de fome de imagens, e captura uma imagem pelo obturador da câmara, depois retira-se para uma sala escura, coloca o filme num ampliador, o papel fotossensível capta o negativo da imagem projectada, e finalmente mergulha-se o papel numa solução química e espera-se que os sais de prata cristalizem, dando forma às tonalidades de cor ou cinzentos.

Por um lado a revelação das Coisas de que falo é um processo muito selectivo: à semelhança do processo da fotografia nós aparentemente escolhemos o que vamos fotografar; mas, por outro lado parece que não se escolhem as Coisas que se hão-de revelar ao contrário da fotografia onde se escolhe o alvo.

Na revelação das Coisas, são certas Coisas que escolhem o "fotografo"; como se um fotografo saísse para a rua para fotografar alvos escolhidos por si, mas à noite na escuridão, certas imagens que não fotografou lhe surgissem vívidamente na retina, impostas pela persistência de uma memória que não reconhece como movida pela sua vontade consciente e pragmática.

Aconselharia a prudência, a velha solteirona de W. Blake, que nos afastássemos das Coisas que se tentam imiscuir dentro da nossa mente fora da jurisdição da nossa vontade consciente e pragmática. Aconselharia a prudência que nos afastássemos da finíssima brecha interior por onde se esgueiram de forma mais do que clandestina essas tais imagens, pedaços de palavras em línguas desconhecidas, sussurros quentes, sem propósito aparente, e que continuássemos as nossas tarefas e planos quotidianos.

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* no título: in "Vai Passar", por Chico Buarque
Texto no corpo: in "The Deer Goddess of Ancient Syberia: A Study in the Ecology of Believe" por EJ Brill
Fotos: Rainhas do Samba, Rio de Janeiro, autores desconhecidos.