20071208

B. e C. (versão 0.03)




B.
Anos depois.
Voltei a encontrá-la há algumas semanas na noite, a trabalhar. O seu corpo e roupa de adolescente, o seu sorriso transcendente. O seu andar sobrevivente.
Sobrevivente a duas tentativas de resolver a vida com a morte, e a uns anos de heroína.
E a um parto de uma bebé, que também sobreviveu ao parto.

Conhecemo-nos há muito muito tempo, naquela altura em que os putos já querem peta-zetas e maltesers a estalar na língua, mas ainda não copos, cigarros e haxe.
Lembro-me dela com um pull-over amarelo (deveria dizer plover), uns óculos de massa por cima dos olhos claros, e um cabelo louro escuro que brilhava na claridade.
Vivia nas vivendas. Tinha um pequeno "jardim" em frente da casa.

Era amiga, quase gémea, da M.
No 1º ano do ciclo preparatório, as duas juntas numa tarde de verão pareciam um gelado com dois sabores, baunilha e morango. Cheiravam a amaciador de roupa, e a champô de maçãs verdes,
Acho que era o palmolive maçãs verdes.
A B. era bonita mas não parecia querer saber disso. A M. dava mais nas vistas e era espevitada. A B. era mais a sombra, uma sombra muito bonita quando olhavas para ela e os teus olhos se desabituavam do clarão mais vivo e encandeante que era a M.
Fiquei sentado ao lado dela numa das aulas, português, inglês, matemática? Não me lembro, talvez mais daqui a bocado me lembre. Apaixonei-me pelos barulhinhos do nariz dela ao respirar. Aqueles assobios quase ultra-sons. Tão pausados.
A paixão foi esmorecendo com a sua frieza comigo, e eu nós só viriamos a resolver o assunto quase 10 anos depois.
No ano seguinte apaixonei-me pela M. e esta, ao contrário da B., deve ter achado piada ao facto, e assim nasceu o meu primeiro namoro da vida.

Voltei a encontrar a B. no curso superior. estava igualzinha.

O mesmo plover amarelo e os mesmo óculos de massa,
o mesmo cheiro a amaciador e a shampô, o mesmo sorriso transcendente, e os mesmos barulhinhos no nariz. estava apenas um pouco maior.
Achou piada às minhas palhaçadas. Com a sua amiga J. ia fumar charros e já não cigarros gamados com a M. Era como ver um filme surreal, ir fumar uns charros no intervalo das aulas com a B.

uma miúda-da-escola-preparatória-tamanho-grande a tirar um calhau de 5 gramas do bolso.

Um dia desapareceu, foi com a mãe para o estrangeiro.
Voltou com o cabelo vermelho, com cabedal coçado, sem óculos e com lentes de contacto, e com histórias de ocupações de casa, de bandas punk, de muita droga

tinha estado a viver a 100 à hora, tinha estado a viver, tinha saído de dentro do plover amarelo como de um casulo.
Trazia um cachimbo de pedra. Foi a única pessoa que conheci que fumava haxe puro, sem misturar com tabaco.

Depois soube pela C.,

e mais tarde pela própria B.
na cama os dois: tinha tentado ir-se embora deste planeta com uns comprimidos.

Existe qualquer coisa entre nós que pega mas não cola. Deixámos novamente de nos ver depois de nos enrolarmos os dois uma semana para afastar o frio do inverno.

Fui sempre sabendo dela pela C.
Soube do estar agarrada ao cavalo,
das curas,
da segunda tentativa de ir andando mais cedo,
das curas,
da cura.
Do namorado impecável e com uma paciência monumental,
da gravidez,
da filha,
da estabilidade,
da estabilidade,
da estabilidade.
Dos anos a passarem, do amadurecimento.

A B. sobreviveu e vive, livre. Encontrei-a na noite, a trabalhar. Bebemos um copo, confidenciámos segredos. Os nossos corpos intimamente perto como dois corpos que se conhecem bem e não tem vergonha nem avidez um pelo outro.

Continuamos uma conversa que havia ficado interrompida .
Teve de ir tratar dos assuntos do concerto no bar. Foi com o seu andar sobrevivente, o sorriso transcendente e o corpo adolescente.




















Há quanto tempo estamos nesta terra?

Quem se atreve a atirar-nos com nomes, como abraços viscosos?

Nunca ninguém se perdeu.











C.

andava tensa e preocupada, mas não falava. Só as bochechas rosadas demais falavam.

Não conseguia adormecer descansada desde à varios dias.


Nesse dia hegou a casa e foi tomar banho, já a família toda começava a jantar.
Chegou à mesa, feita diva, com o seu pijama especial, e começou a maltratar o pai.
Tem apenas 11 anos, e já aprendeu a não falar e a maltratar o pai quando está mal por dentro.

Quando digo "aprendeu" quero dizer mesmo isso. Aprendeu que não vale a pena falar porque não é ouvida. O pai não a sabe ouvir, e por isso ela maltrata-o. "Vai buscar-me um copo de água", "este copo está sujo, nem sabes trazer um copo limpo!".

A tensão cresceu, e cresceu, e cresceu.

Ela como uma panela de pressão deixava escapar vapor quente, e ia queimando suavemente quem apanhava com ele. O irmão, o pai, a mãe.

Talvez ninguém, nem mesmo ela tenha notado que a tensão era demasiada. Eu pelo menos fui apanhado despercebido.


A audição de violino na semana seguinte, o colégio novo com meninos ricos e provavelmente socio-economicamente arrogantes, aumentando o lume natural do forno do crescimento.

De repente, um prato voa na mesa numa explosão de pizza, um esgar paterno de adamastor e uma mão estala-lhe na boca, uma berlaita na cara, os gritos.
Caos, finalmente.
Agora a dor física e o ultraje de ter sido batida sobrepõe-se à inquietação e medo interiores.

E começa finalmente a falar,

as palavras e os sentimentos abafados jorram no meio do choro.
abraço-a, e fico com a manga da camisola molhada de lágrimas.

As angústias e a dor são apenas o que seria de esperar para a sua idade:
todos em casa se atrasam de manhã, eu próprio testemunhei como o F. tem um incrível mau acordar e leva uma eternidade a calçar as meias, a mãe anda como uma preta de um lado para o outro a preparar nestuns, que nunca estão bons à primeira colherada, mochilas, lápis ou dinosssaurios que desapareceram e geram uma sinfonia de pius de patinhos feios semi-acordados pela casa, as sandes de tulicreme choram por ser feitas, e os documentos de trabalho dela a recusarem-se a comparecer ao encontro com a pasta à última da hora...
e nesta autêntica batalha contra o general manhã de inverno

ela teme todos os dias chegar atrasada à escola. e espera impotente de mala na mão que o resto do batalhão fumegante saia de casa.

e não havia meio de se entender que isso era a coisa mais terrível e temível que lhe podia acontecer, chegar atrasada e ser olhada por todos, falhar, ser apontada. Ser alvo de má língua e rejeição, como provavelmente ela já fez com outros também. As crianças são os mais terríveis dos seres, vivem ainda na selva.

Chora e chora, mais e mais, à mesa de jantar,
hoje quero que tudo se lixe mas vão comer lágrimas de sobremesa,

mais ao fundo da catarse,
as palavras e os sentimentos mais subterrêneos e assustadores para ela acabam por vir à cratera da boca:
ninguém se importa comigo, estou sozinha, não tenho aliados interiores nesta família. Não me conhecem, estou a ficar uma estrangeira, uma exilada na própria casa.

Não vais não, que eu estou aqui e agora vamos ouvir o que se passa contigo,
Não não vais ter insónias hoje, hoje vais dormir melhor depois de pores isso tudo cá para fora,
as lágrimas iam escorrendo como pérolas cristalinas de dor, medo, coragem e silêncio, cozinhadas durante semanas.

---
Ontem depois de mais uma batalha de almofadas depois do jantar, e enquanto fugia do M. e do F. que me queriam comer a gargalhar, chocámos os dois no meio da sala, ela arreganhanhou-me os dentes e mostrou o aparelho novo, que tinha colocado antes de ir dormir, "então miúda tens uns dentes novos?" "não, é um aparelho" disse ela contente fugindo para o quarto porque a voz saía distorcida e cheia de saliva a borbulhar e já sabia que eu não ia resistir a fazer pouco dela.





















Mares convulsos,
ressacas estranhas,
Cruzam-te a alma de verde escuro.
As ondas que te empurram...

Berras às bestas
Que te sufocam
Em abraços viscosos


Esse frio surdo
O frio que te envolve
Nasce na fonte
Na fonte da dor



2 comments:

Anonymous said...

"Mares convulsos,
ressacas estranhas"


_____________

E a tua boca..a baloiçar.

[me]

Nos.
olhos dentro.


________________/

Belíssimo.

Beijo em B.

1.01 said...

Olá,

:)

de dentro dos olhos