20080402

a ribeira [0.03]

What are they gonna do when the rivers overrun?
Other than tremble incessantly.





2

Não te banharás 2 vezes na mesma ribeira.
como seria bom poder-me esconder atrás de Heraclito; como um boneco articulado por detrás do seu ventríloquo. De Heraclito, e de todos os seus filhos e netos e bisnetos, uns atrás dos outros a falar em vez de mim.

Ela finalmente telefonou a pedir explicações para o silêncio. Explicações que ou magoam tanto que fazem cair um novo e sepulcral silêncio, ou então pedem mais e mais explicações, meias verdades a rodear cada vez mais perto aquele sepulcro de silêncio que se tenta a todo o custo evitar como um chão sagrado e delirante de febre, onde já não existem mais explicações;

como desejava que ela tivesse intuido, e intuido que eu tivesse intuído a sua intuição, de que era tempo de desaparecermos um do outro no turbilhão e na espuma dos dias e das noites. Mas não. Ela estava ainda à espera, e afinal eu tinha intuído nada mais do que o meu próprio desejo de que os nossos braços fossem como o vento.
A sua dor e perplexidade foram mais do que um balde de água fria, cheia de algas e raízes de nenúfar, foi um mergulho numa ribeira fria, que me atordoou e me lançou simultaneamente o presente e no passado.

O carro precisava de óleo, de água e de ar. E eu precisava de refazer os meus passos de infância; aqueles todos entre a Torre de Belém e os terrenos baldios de Algés.

Hoje fiz dentro do meu carro um caminho que tantas vezes percorri a pé na minha infância.

A escola primária, as crianças estavam a almoçar no refeitório. As árvores são as mesmas.
E eu nos meus passeios solitários, o mesmo.

Apanhado de surpresa no meio dos desejos das pessoas, das pessoas, esses seres atarefados e estratosféricos de passos pesados que me pisam os pés na sua pressa, incapazes de se satisfazer acima de tudo em passeios solitários, em vagueares comtemplativos,




esses seres cheios sempre de uma pressa eficaz que nunca entendi. que
admiro, que me intriga, que questiono se não a deveria ter, mas que afinal nunca entendi.

Reparei que as árvores são as mesmas, as crianças no refeitório são outras mas as árvores são as mesmas; e as crianças a almoçar já não são as mesmas outra vez porque já passaram outra vez mais trinta anos e nós vamos a caminho dos setenta e não dos quarenta, e a pressa das pessoas continua a mesma, as crianças são novas, mas a pressa das pessoas velhas continua a mesma de quando eram crianças. Talvez só sejam capazes de se satisfazer em passeios solitários e contemplativos quando finalmente perceberem que é a última semana ou último dia em que estão vivos...
Talvez seja esse o meu problema e talvez seja por isso que a minha memória é tão ténue, talvez seja sempre a última semana que penso estar vivo.

Se morresse hoje, o carro haveria de ficar com óleo, água no sistema de refrigeração e no reservatório do limpa vidros, e a pressão certa de ar nos pneus. e ela ficaria com a informação certa para não enlouquecer, a informação da razão para o silêncio.

Talvez fosse a minha alma desencarnada a vaguear pelos sítios do passado hoje. Talvez.

Até ao momento em que percebi que a vida estava a recomeçar. Da terra.
Quando vi o batalhão de homens e mulheres vestidos de verde, em redor do parque de estacionamento.

1

Um batalhão de jardineiros, todos vestidos de verde e armados.

atarefam-se a plantar e a semear. a enterrar estacas.
um batalhão que não se ocupa a matar mas a espalhar vida.
tubos de rega, debaixo da terra, em vez de minas.
tudo acontece em volta da ribeira, cercando o novo parque de estacionamento.
a velha quinta ainda sobrevive, guardada por torres modernas que lhe dão espaço suficiente para respirar, para se desmoronar lentamente,
os muros cobertos de uma trepadeira que flora campainhas lilases e que se alimenta da sua terra e pedras escurecidas em decadência.
a canção constante das águas a escorrer. a ribeira parece estar contente, e os jardineiros são embalados e acordados pelo espumante do seu som.
isto é a primavera, e as suas portas abriram-se para deixar sair um batalhão de homens e mulheres vestidos de verde que vem para espalhar vida.
as cidades ainda não estão perdidas.






3

como seria bom poder-me esconder atrás das cidades, passear em cidades destruídas e desertas, pensava eu quando era criança.

Como é bom
encontrar-me de novo nas cidades vivas, mergulhar dentro das ribeiras, na espuma dos dias. Refazer os meus passos em ti. Sem explicações. No meio de um siêncio sagrado, rodeado por muros desmoronados onde floram as nossas palavras, lilases, "um passeio calmo por um sítio muito estranho" amor. e cheio de vida.




4 comments:

Lord of Erewhon said...

Além de seres exímio nas templates... :) ... crias uma atmosfera única!

Abraço.

Jo said...

até senti o cheiro da terra remexida e da relva acabada de cortar/plantar...

deu vontade de ir para um jardim. refazer passos perdidos da infância.


beijo*

[A] said...

O problema não estará em nós continuarmos sempre os mesmos?

Não sei porquê, mas vieram-me à ideia os movimentos dos corpos celestes: rotação, revolução e translação.

un dress said...

has it!?

verdemente verde

esperança

minha


[ as a prayer...

ámen