20080404

2 dei: 11 anos: capitulo 19


A geometria era como desenhar (com outra forma) números - números com volume - e os números eram desenhos de nada.

Hoje, a minha sobrinha C. que alguns se calhar já ouviram falar de posts anteriores, fez 11 anos. Eu não tinha ainda celebrado o meu aniversário com a família e por isso foi dia também de ter uma prenda pelos meus 37 anos. A minha irmã deu-me um livro. Abri-o e fascinou-me tanto como me irritou. Irritou porque estava excelentemente escrito por um vivo mais ou menos da minha idade e isso despertou-me inveja. Mas também me irritou porque eram sobretudo jogos de palavras. Brilhantes, mas jogos de palavras. E eu sei que por detrás de jogos de palavras aparentemente lúdicos ou puramente eruditos se podem esconder as mais manhosas filosofias de "vida". A minha irritação dissipou-se e passou a admiração mais pura e a um interesse desinteressado, quando li o capitulo 19.

A realidade desaparece no momento em que um pressentimento avança [...] sente-se aí que a realidade é uma coisa suja, que os líquidos mais puros podem ter tubarões, um copo de água pode ter um tubarão. Não deves prever tudo até ao último dia. A surpresa é um direito dos vivos. Há lobos suaves, conheces animais hipócritas que tem um pêlo suave. A indústria entra pela tua cadeira privada e a fábrica inteira está debaixo da tua cadeira privada. É a industria que produz o rídiculo, nunca te esqueças. Tornas-te um homem sozinho porque as coisas industriais passeiam por todo o lado. A ternura dos lobos é uma estratégia. O Mundo avança atrás de um coxo. A cidade avança atrás de um coxo. Os homens passeiam impacientemente em redor do ferreiro que faz a lamina para o seu suicídio. [...] Os olhos estão ocupados a ser vistos. Ninguém selecciona, num catálogo, as cidades para o exército invadir. Uma família não tem influência nas alterações de fronteiras entre países. O país existe sem a opinião das famílias, avança como se tivesse pernas. Não há dinheiro público: o que é isso de dinheiro colectivo?


A realidade é uma coisa suja e desaparece no momento em que um pressentimento avança. Preciso, exacto, correcto. Ele não fazia jogos de palavras nos primeiros capítulos: introduzia um estilo discursivo, abria um campo linguístico.

Não invejamos aquilo que é bom. Invejamos o que não presta e se anuncia como óptimo. A inveja não existe: é desconfiança e irritação com aquilo que mata e apodrece quando anuncia dar vida eterna.

Existem livros de normas. E certos poemas, quando lidos ao contrário, podem revelar-se como excelentes indicações para a construção de máquinas.


In "A perna esquerda de Paris seguido de Roland Barthes e Robert Musil" por Gonçalo M. Tavares

3 comments:

NARNIA said...

Zerinhos a inveja é uma coisa feia :)
De facto ha quem escreva e consiga abordar de forma abrangente e aprofundada uma grande variedade de questões, contribuindo com um largo corpo teorico conceptual e prático no dominio do saber.
Outros usam a ironia para encapar uma angustia e uma aceitação de algo inevitável, um jogo de palavras para esconder a inteligência de um discurso muito mais profundo, caustico...
Outros há em que a construção de textos pertuba as "visceras" e o pensamento é a memória dos argumentos, e a maquina das palavras é a realidade.

(pronto isto tudo porque me apeteceu, não sei se faz sentido, mas tb não interessa nada)

BJ VERDE

un dress said...

como te entendo a fascinação
do dizer demais

escrever demais

ler demais estes...

excessos... :)

a mística de já não poderes escrever - para quê?! :)

e depois escrever sempre - para que

e a vontade de esquecer e agarrar-se a uma coisa qualquer em vez deste voo de

leo pardo

inconstável nas horas da vida

ai vida vida ai




~





e beijO com asAs :)

Anonymous said...

Barthes.


Estudei-o na faculdade.

passei por ele.e sentei-me rente às palavras.
(A linguagem literária aumenta ainda a imerecida importância da escrita.)



Gonçalo M. tavares.

ácido.como se quer.em dias de sol.e mais ou menos amargos.



Beijo.In.sano.que brota. daqui.