Provavelmente aquela coisa para a qual, incerto, o homem caminhava era apenas criada pela sua ânsia...
...o homem não tinha nenhum plano formado e, como arma, parecia ter apenas o facto de estar vivo. Na tarde mais tranquila, ele agora caíra numa clarividência vazia e humildemente intensa que o deixava corpo a corpo com o pulso mais íntimo do desconhecido. A sua vontade continuou a avançar.
Agora, gradativamente mais sistemático, cada vez que o vento principiava a bater-lhe apenas numa das faces ou já na nuca, o homem, paciente como um burro, corrigia a direcção dos passos até sentir a boca de novo batida pela humidade.*
Mas tens medo, sei que sempre tiveste medo do ritual. Mas quando se foi torturada até se chegar a ser o núcleo, então passa-se demoniacamente a querer servir ao ritual, mesmo que o ritual seja o acto de consumição própria - assim como para se ter o incenso o único meio é o de queimar o incenso.
- Eu sei: nós os dois sempre tivemos medo da minha solenidade e da tua solenidade. Pensávamos que era uma solenidade de forma. E nós sempre disfarçávamos o que sabíamos: que viver é sempre questão de vida ou de morte, daí a solenidade. Sabíamos também, embora sem o dom da graça, que somos a vida que está em nós, e que nós nos servimos.
- Fiz tal esforço para me falar de um inferno que não tem palavras. Agora, como falarei de um amor que não tem senão aquilo que se sente e diante do qual a palavra "amor" é um objecto empoeirado? O inferno pelo qual eu passara - como te dizer? - fora o inferno que vem do amor.
Ah, as pessoas põem a ideia de pecado no sexo. Mas como é inocente e infantil esse pecado. O inferno mesmo vem é o do amor. Amor é a experiência de um perigo de pecado maior - é a experiência da lama e da degradação e da alegria pior. Sexo é o susto de uma criança. Mas como falarei para mim mesma do amor que eu agora sabia?
É quase impossível. É que no neutro do amor está uma alegria contínua, como o barulho das folhas ao vento...o que é Deus estava mais no barulho neutro das folhas ao vento do que na minha antiga prece humana.
A menos que eu pudesse fazer a prece verdadeira, e que aos outros e a mim mesma pareceria a cabala de uma magia negra, um murmúrio neutro.
- Escuta, não te assustes: lembra-te que eu comi do fruto proibido e no entanto não fui fulminada pela orgia de ser. Então, ouve: isso quer dizer que me salvarei ainda mais do que eu me salvaria se não tivesse comido da vida...ouve, por eu ter mergulhado no abismo é que estou começando a amar o abismo de que sou feita. A identidade pode ser perigosa por causa do intenso prazer que se tornasse apenas prazer. Mas eu agora estou aceitando amar a coisa!
E não é perigoso, juro que não é perigoso.
Pois o estado de graça existe permanentemente: nós estamos sempre salvos. Todo o mundo está em estado de graça. A pessoa só é fulminada pela doçura quando percebe que está em graça, sentir que se está em graça é que é o dom, e poucos se arriscam a conhecer isso em si. Mas não há perigo de perdição, agora eu sei: o estado de graça é inerente.
- Escuta. Eu estava habituada somente a transcender. A esperança para mim era adiamento. Eu nunca havia deixado a minha alma livre, e me havia organizado depressa em pessoa porque é arriscado demais perder-se a forma. Mas vejo agora o que na verdade me acontecia: eu tinha tão pouca fé que havia inventado apenas o futuro, eu acreditava tão pouco no que existe que adiava a actualidade para uma promessa e para um futuro.
Mas descubro que não é necessário sequer ter esperança.
É muito mais grave. Ah, sei que estou de novo mexendo no perigoso e que deveria calar-me para mim mesma [...]
A notícia que estou a receber de mim mesma soa-me cataclísmica, e de novo perto do demoníaco. Mas é só por medo. É medo. Pois prescindir da esperança significa que eu tenho que passar a viver, e não apenas a prometer-me a vida. E este é o maior susto que posso ter [...]
Eu não tinha coragem de deixar de ser uma promessa, e eu me prometia, assim como um adulto que não tem coragem de ver que já é adulto e continua a prometer-se a maturidade.
E não é perigoso, juro que não é perigoso.
Pois o estado de graça existe permanentemente: nós estamos sempre salvos. Todo o mundo está em estado de graça. A pessoa só é fulminada pela doçura quando percebe que está em graça, sentir que se está em graça é que é o dom, e poucos se arriscam a conhecer isso em si. Mas não há perigo de perdição, agora eu sei: o estado de graça é inerente.
- Escuta. Eu estava habituada somente a transcender. A esperança para mim era adiamento. Eu nunca havia deixado a minha alma livre, e me havia organizado depressa em pessoa porque é arriscado demais perder-se a forma. Mas vejo agora o que na verdade me acontecia: eu tinha tão pouca fé que havia inventado apenas o futuro, eu acreditava tão pouco no que existe que adiava a actualidade para uma promessa e para um futuro.
Mas descubro que não é necessário sequer ter esperança.
É muito mais grave. Ah, sei que estou de novo mexendo no perigoso e que deveria calar-me para mim mesma [...]
A notícia que estou a receber de mim mesma soa-me cataclísmica, e de novo perto do demoníaco. Mas é só por medo. É medo. Pois prescindir da esperança significa que eu tenho que passar a viver, e não apenas a prometer-me a vida. E este é o maior susto que posso ter [...]
Eu não tinha coragem de deixar de ser uma promessa, e eu me prometia, assim como um adulto que não tem coragem de ver que já é adulto e continua a prometer-se a maturidade.
dá-me a tua mão: vou agora contar-te como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo e aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio. [...]
A identidade me é proibida eu sei. Mas vou-me arriscar porque confio na minha cobardia futura, e será a minha cobardia essencial que me reorganizará de novo em pessoa. Não só através da minha cobardia. Mas reorganizar-me-ei através do ritual com que já nasci. A identidade me é proibida mas meu amor é tão grande que não resistirei à minha vontade de entrar no tecido misterioso, nesse plasma de onde talvez eu nunca mais possa sair.
a verdade não faz sentido, a grandeza do mundo que me encolhe. Aquilo que provavelmente pedi e finalmente tive, veio no entanto deixar-me carente como uma criança que anda sozinha pela terra. Tão carente que só o amor de todo o universo por mim poderia consolar-me e cumular-me, só um tal amor que a própria célula-ovo das coisas vibrasse com o que estou chamando de um amor. Daquilo a que na verdade apenas chamo mas sem saber-lhe o nome.
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fotos: Teresa, e Ana
texto, a leitura de férias: Clarice Lispector: "A Paixão Segundo G.H.", e * "A Maçã no Escuro"