20080825

a isto eu xamo Férias [2.0]

...mal constatou a própria sensação, tendo o cuidado de não constatar demais e deixar de perceber. O desfeito alarido chegava-lhe como se de muito longe lhe soprassem perto do ouvido: foi esta obscura noção de distância que ele teve, e parou farejando. Embaraçadamente entregue ao recurso de si mesmo, parecia usar o próprio desamparo como bússola. Experimentou calcular se estaria perto ou infinitamente longe...

Provavelmente aquela coisa para a qual, incerto, o homem caminhava era apenas criada pela sua ânsia...

...o homem não tinha nenhum plano formado e, como arma, parecia ter apenas o facto de estar vivo. Na tarde mais tranquila, ele agora caíra numa clarividência vazia e humildemente intensa que o deixava corpo a corpo com o pulso mais íntimo do desconhecido. A sua vontade continuou a avançar.
Agora, gradativamente mais sistemático, cada vez que o vento principiava a bater-lhe apenas numa das faces ou já na nuca, o homem, paciente como um burro, corrigia a direcção dos passos até sentir a boca de novo batida pela humidade.*

















Mas tens medo, sei que sempre tiveste medo do ritual. Mas quando se foi torturada até se chegar a ser o núcleo, então passa-se demoniacamente a querer servir ao ritual, mesmo que o ritual seja o acto de consumição própria - assim como para se ter o incenso o único meio é o de queimar o incenso.















- Eu sei: nós os dois sempre tivemos medo da minha solenidade e da tua solenidade. Pensávamos que era uma solenidade de forma. E nós sempre disfarçávamos o que sabíamos: que viver é sempre questão de vida ou de morte, daí a solenidade. Sabíamos também, embora sem o dom da graça, que somos a vida que está em nós, e que nós nos servimos.










- Fiz tal esforço para me falar de um inferno que não tem palavras. Agora, como falarei de um amor que não tem senão aquilo que se sente e diante do qual a palavra "amor" é um objecto empoeirado? O inferno pelo qual eu passara - como te dizer? - fora o inferno que vem do amor.













Ah, as pessoas põem a ideia de pecado no sexo. Mas como é inocente e infantil esse pecado. O inferno mesmo vem é o do amor. Amor é a experiência de um perigo de pecado maior - é a experiência da lama e da degradação e da alegria pior. Sexo é o susto de uma criança. Mas como falarei para mim mesma do amor que eu agora sabia?










É quase impossível. É que no neutro do amor está uma alegria contínua, como o barulho das folhas ao vento...o que é Deus estava mais no barulho neutro das folhas ao vento do que na minha antiga prece humana.

A menos que eu pudesse fazer a prece verdadeira, e que aos outros e a mim mesma pareceria a cabala de uma magia negra, um murmúrio neutro.
















- Escuta, não te assustes: lembra-te que eu comi do fruto proibido e no entanto não fui fulminada pela orgia de ser. Então, ouve: isso quer dizer que me salvarei ainda mais do que eu me salvaria se não tivesse comido da vida...ouve, por eu ter mergulhado no abismo é que estou começando a amar o abismo de que sou feita. A identidade pode ser perigosa por causa do intenso prazer que se tornasse apenas prazer. Mas eu agora estou aceitando amar a coisa!
E não é perigoso, juro que não é perigoso.
Pois o estado de graça existe permanentemente: nós estamos sempre salvos. Todo o mundo está em estado de graça. A pessoa só é fulminada pela doçura quando percebe que está em graça, sentir que se está em graça é que é o dom, e poucos se arriscam a conhecer isso em si. Mas não há perigo de perdição, agora eu sei: o estado de graça é inerente.
- Escuta. Eu estava habituada somente a transcender. A esperança para mim era adiamento. Eu nunca havia deixado a minha alma livre, e me havia organizado depressa em pessoa porque é arriscado demais perder-se a forma. Mas vejo agora o que na verdade me acontecia: eu tinha tão pouca fé que havia inventado apenas o futuro, eu acreditava tão pouco no que existe que adiava a actualidade para uma promessa e para um futuro.
Mas descubro que não é necessário sequer ter esperança.
É muito mais grave. Ah, sei que estou de novo mexendo no perigoso e que deveria calar-me para mim mesma [...]


A notícia que estou a receber de mim mesma soa-me cataclísmica, e de novo perto do demoníaco. Mas é só por medo. É medo. Pois prescindir da esperança significa que eu tenho que passar a viver, e não apenas a prometer-me a vida. E este é o maior susto que posso ter [...]

Eu não tinha coragem de deixar de ser uma promessa, e eu me prometia, assim como um adulto que não tem coragem de ver que já é adulto e continua a prometer-se a maturidade.













entregar-me ao que não entendo será pôr-me à beira do nada. Será ir apenas indo, e como uma cega perdida num campo. Essa coisa sobrenatural que é viver. O viver que eu havia domesticado para torná-lo familiar. Essa coisa corajosa que será entregar-me, e que é como dar a mão à mão mal-assombrada do Deus, e entrar por essa coisa sem forma que é um paraíso.































dá-me a tua mão: vou agora contar-te como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo e aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio. [...]
















A identidade me é proibida eu sei. Mas vou-me arriscar porque confio na minha cobardia futura, e será a minha cobardia essencial que me reorganizará de novo em pessoa. Não só através da minha cobardia. Mas reorganizar-me-ei através do ritual com que já nasci. A identidade me é proibida mas meu amor é tão grande que não resistirei à minha vontade de entrar no tecido misterioso, nesse plasma de onde talvez eu nunca mais possa sair.


















a verdade não faz sentido, a grandeza do mundo que me encolhe. Aquilo que provavelmente pedi e finalmente tive, veio no entanto deixar-me carente como uma criança que anda sozinha pela terra. Tão carente que só o amor de todo o universo por mim poderia consolar-me e cumular-me, só um tal amor que a própria célula-ovo das coisas vibrasse com o que estou chamando de um amor. Daquilo a que na verdade apenas chamo mas sem saber-lhe o nome.



























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fotos: Teresa, e Ana
texto, a leitura de férias: Clarice Lispector: "A Paixão Segundo G.H.", e * "A Maçã no Escuro"

13 comments:

Jo said...

summer

*

[A] said...

[vai ser a minha próxima leitura...]


"Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está segurando a minha mão.

Oh, pelo menos no começo, só no começo. Logo que puder dispensá-la, irei sozinha. Por enquanto preciso segurar esta tua mão – mesmo que não consiga inventar teu rosto e teus olhos e tua boca. Mas embora decepada, esta mão não me assusta. A invenção dela vem da ideia de amor como se a mão estivesse realmente ligada a um corpo que, se não vejo, é por incapacidade de amar mais. Não estou à altura de imaginar uma pessoa inteira porque não sou ma pessoa inteira. E como imaginar um rosto se não sei de que expressão de rosto preciso? Logo que puder dispensar tua mão quente, irei sozinha e com horror. O horror será a minha responsabilidade até que se complete a metamorfose e que o horror se transforme em claridade. Não a claridade que nasce de um desejo de beleza e moralismo, como antes mesmo sem saber eu me propunha; mas a claridade natural do que existe, e é essa claridade natural o que me aterroriza. Embora eu saiba que o horror – o horror sou eu diante das coisas.

Por enquanto vou inventando a tua presença, como um dia também não saberei me arriscar a morrer sozinha. (...)"

[...assim que tiver férias]

~pi said...

extenso como a entrega

excesso que não é ex

ces

so

[[ é só

to da

à

[ a

vida




:)

1.01 said...

Maria:
essa voz e essas canções tocam-me em sítios escondidos, que não sabia existirem, subterrâneos de ternura e paz, no meio dos fantasmas que param e sentam para ouvir, e chorar.

eis uma versão da mesma canção, por E. P., o minotauro-dionísios do Mississipi*

1.01 said...

[a]:
o livro descreve uma experiência de iniciação e revelação.
Essa mulher, a Clarice, é uma pessoa extraordinária e caminha connosco fora do mundo ordinário.
Ela descreve o que posso apenas muito rudemente chamar de experiências de dominância do hemisfério direito, ou coluna da esquerda...

não sei se já te referi uma comunicação de uma neurologista que teve um avc e sobreviveu, um testemunho fantástico que nos pode ajudar a navegar no Fantástico, com a Clarice.

http://www.ted.com/index.php/talks/jill_bolte_taylor_s_powerful_stroke_of_insight.html

coragem,
bjs

1.01 said...

~pi:
ex
tenso

ex
cesso

extra
ordinário

ex
comungado

ex

x

(***)

Anonymous said...
This comment has been removed by the author.
R. said...

Isso são férias,e tu sabes vivê-las.e eu olha tu ali na fotografia :D

Um beijo

*

R. said...

está ali um eu a mais,e nem sequer é tarde ;P

sonho said...

clap
clap
clap
...

voltei a gostar
muito

1.01 said...

Vertigo:
estão entre as minhas melhores férias, sem dúvida. Apender a distinguir entre liberdade e estar perdido. E sim, olha um Eu, e um eu a a mais ali..:)*

Sonho:
gosto quando gostas...
*

NARNIA said...

Zerinhos
Grandes férias!!!
As minhas também foram e faço questão de continuar em "clima quente" :))

Beijinho grande

1.01 said...

Narnia:
também eu...
;)*