20080912


Levantar de rastos
Incapaz de enfrentar o dia e o corpo,
o peso do próprio corpo.
E voltar para a cama doente de luz,
até alcançar aquele estado de intoxicação por sono, como ópio, aquele estado em que o corpo deixa de pesar e deixa de doer,
e em que as ideias se tornam mais esbatidas e menos cruéis.
O veio negro, pastoso, que ensopa a cauda e as asas da minha existência há anos, há décadas, continua a brotar, e é cada vez mais denso. A ferida não sara, o ódio e a raiva não esmorecem, a culpa não diminui, pelo contrário.

Quem pressente estas coisas em mim, e pior, quem as vê, assusta-se. Pudera, também eu vivi, e vivo, em susto. Trabalho no meio do mar, vivo por cima de um vulcão adormecido. A falta de vento, ou o rumor surdo da terra ao longe, anunciam-me todas as manhãs catástrofes terríveis, e o crepúsculo de cada tarde embriaga-me de uma gratidão pasmada de condenado.

É que me está a sair da boca o meu avô, e os seus profundos suspiros resignados envoltos num sorriso estranho, que transbordam de uma alma inundada de misteriosa tristeza. É que não me sai da pele e da face a amargura alienada e profundamente melancólica do meu pai, e o ressentimento invencível contra a vida e o mundo. É que não me sai do sangue a violência súbita da minha avó contra os que estão próximos, como se os pudesse destruir e recriar mais perfeitos logo a seguir.
Escondo-os o melhor que posso, escondo-os até conseguir, sobretudo da minha amada.

Mas quem pressente estas coisas em mim, e pior, quem as vê, assusta-se. Pudera, também eu vivi, e vivo, em susto. Trabalho no meio do mar, vivo por cima de um vulcão adormecido. A falta de vento, ou o rumor surdo da terra ao longe, anunciam-me todas as manhãs catástrofes terríveis, e o crepúsculo de cada tarde embriaga-me de uma gratidão pasmada de condenado.

As criaturas profundas do Mar existem, eu vi-as, já me perseguíram. Assustam-me tanto, mas tenho de trabalhar por cima delas, conviver com elas todos os dias.

Amo perdidamente a Terra como ninguém, mas sei que a qualquer dia, a qualquer momento, ela me pode engolir e liquefazer como manteiga, nem por ódio nem por amor, só por ser assim.

E ter de aceitar a cada dia a morte eminente, desde que aprendi a pensar por palavras, destroça-me pois estou apaixonado pela Vida, e a dor do luto por Ela envolve-me todo como uma rede de aranha, todos os dias.

Queria então ser imortal, mas o pensamento ralha-me cada vez mais violentamente que não pode ser, o que me condena a ser uma criança injustamente contrariada no desejo mais importante, na própria possibilidade de existir mais um momento.
Como cada segundo é para mim um grão de areia a cair num relógio de vidro, tento abolir o tempo, o que me suga extrema energia, me vampiriza no pacto diabólico, e me deixa exausto ao fim de algum tempo;

e no final desse tempo Ele vem mais uma vez reclamar a minha alma
e devolver-me o relógio de vidro.
















Quem pressente estas coisas em mim, e pior, quem as vê, assusta-se. Pudera, também eu vivi, e vivo, em susto. Trabalho no meio do mar, vivo por cima de um vulcão adormecido. A falta de vento, ou o rumor surdo da terra ao longe, anunciam-me todas as manhãs catástrofes terríveis, e o crepúsculo de cada tarde embriaga-me de uma gratidão pasmada de condenado.

Se eu pudesse consolar e acalmar esse susto que causo, esse pânico e essa desilusão enojada com o existir que causo, habituar alguém a ele, como eu me habituei, deixaria de estar só. Ajudar alguém a resistir a ele, como eu resisto. Partilhar com alguém a embriaguez causada pela gratidão pasmada por mais um crepúsculo.

E a cada vez que consigo que alguém volte, se volte a aproximar depois da fuga e da auto-expulsão, fico menos só. Mas a inocência perdeu-se; e com a inocência perdida perde-se o presente, e fica-se eternamente condenado ao passado e ao futuro.
Se houvesse alguém que conseguísse pensar e sentir estas coisas e manter alguma inocência, e eu a encontrasse, eu deixaria de estar só.

E talvez então parasse de me sair da boca a misteriosa e resignada tristeza, e me parasse de sair dos poros da pele a amargura alienada e melancólica e o ressentimento invencível e o meu sangue se purificasse da violência súbita contra os que estão próximos.

E talvez então eu parasse de querer comer almas de pessoas, e parasse de querer ser devorado por elas para me salvar.
Tentei, e depois recusei, o álcool e as drogas como remédio e desculpa. As minha drogas químicas são o sono e o sexo.
Os meus licores são o odor dos poros da pele e o som das palavras e do silêncio dos outros.

Aprendi a derrocada dos sonhos e o humor dos pesadelos quando se cumprem. Substituí pesadelos a dormir por delírios acordado, e substituí os sonhos acordado pela intoxicação do sono profundo.

A fome levou-me de novo aos rebanhos; a esperança de ser devorado levou-me para o meio dos lobos.

Foi isto que sonhei durante a noite, e acordei de rastos, incapaz de suportar o peso da manhã, o peso do meu próprio corpo. E voltei para a cama doente de luz,
até alcançar aquele estado de intoxicação por sono, como ópio, aquele estado em que o corpo deixa de pesar e deixa de doer,
e em que as ideias de tornam mais esbatidas e menos cruéis. *



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* i
n "Diário de bordo da perdição". José Elias Nunes

3 comments:

~pi said...

? o esforço da ressurreição

das manhãs

cada vez

maioooooooooooor



~

[A] said...
This comment has been removed by the author.
[A] said...

um nó que se formou na garganta