20070902

Dispersos (nós somos os sobreviventes) versão 0.02



Longa se torna a espera
Na névoa que cobre o rio
Lenta vem a galera
Na noite quieta de frio
E quando...


Os Jardins da Torre de Belém são um sítio fenomenal, tropical, com uma noite destas então tornou-se extraordinário o concerto dos meus primeiros ídolos do rock português, ainda sobreviventes, agora crescidos e ainda livres. Uns xiripitis esfumaçados na areia do rio, com a barriguinha consolada de cerveja fresca, conversa amena com amigos antigos de olhos preocupados com o Outono que se avizinha,

lembrando como na minha infância as pedras eram verdes e agora há uma areia branca macia, mas os putos como eu e a minha irmã ainda descem e sobem a correr a enorme e voluptuosa escadaria de lioz com espadas de madeira na mão, e dão tombos no musgo que fazem rir quem os olha . A Torre, de tão branca parece um dente.



















Já chegam perto, e não com passos lentos,
Dos jardins odoríferos formosos,
Que em si escondem os régios aposentos,
Altos de torres não, mas sumptuosos.
Edificam-se os nobres seus assentos
Por entre os arvoredos deleitosos:
Assim vivem os Reis daquela gente,
No campo e na cidade juntamente.





















Parece que ainda não acordei deste sonho: estou em Lisboa, Lisboa está um borracho quente, cada vez mais molhada de Rio, e eu vou ficar para a vida,
e como se não bastasse, os Xutos rebentam em decibéis límpidos os Barcos Gregos 20 anos depois de eu adolescente ter comprado, idolatrado e bebido o vinil do Cerco





Fazer-me ao mar, Embarcar, Num Barco Grego



Ela veio-me beijar, como jamais beijara
e eu fiquei a olha-la, como jamais ficara
mostrou-me o seu corpo, como jamais mostrara
e eu fiquei tao quente, como jamais ficara
virou-se pra mim, como jamais virara
segurei-lhe a mao, como jamais segurara
ofereceu-me a boca, como jamais ofertara
e eu fique a ama-la, como jamais amara











A caminho de casa às 6.00 da manhã, arriscando um encontro indesejado com















a polícia de trânsito devido ao desconforto que a minha taxa de alcoolémia provocava na consciência ao volante. Não faço ideia de qual seria, mas desconfio sériamente que estaria naquele intervalo grande entre a taxa máxima permitida por lei e a taxa que me levaria a ir passar a noite na esquadra.






























O facto de ter começado por uma caipirinha ao pôr so sol numa espreguiçadeira em frente ao rio deve ter feito com que as cervejas que se seguiram não tivessem aumentado a minha sensação de embriaguez, embora eu soubesse por aritmética simples que entre as 22.00 e as 6.00 da manhã os meus glóbulos vermelhos deviam estar a circular aos eSSes e a cantar "is this the way to amarillo" abraçados aos glóbulos brancos, a não ser que o meu fígado se tivesse transformado numa refinaria industrial. Assim resolvi parar a viatura nas docas quando vi as primeiras roulotes, e meter qualquer coisa séria no estômago enquanto tentava cheirar se as patrulhas estariam mais à frente a caçar infratores.












Fiquei absolutamente fascinado com o profissionalismo e a eficácia do vendedor-cozinheiro de hamburguers e cachorros. Passa das seis da matina e aquele homem cozinhava cachorros e hamburgueres para uma multidão de adolescentes e de adolescentes tardios esfomeados de todas as raças e proveniências. A sua concentração no que fazia era total, com uma coreografia de guardanapos, espatula na chapa quente, frascos de molhos pendurados, cuvetes inox de cogumelos, salada, milho, batata palha e tudo o mais de paradísiaco que uma roulote pode oferecer ao viajante da noite esfaimado. Para além disso os trocos, os pagamentos, as conversas com os clientes mais e menos educados e arrogantes.












Já não me lembro quem foi que disse que os verdadeiros heróis são as pessoas comuns, que se levantam todos os dias a horas absurdas, ou todas as noites, e mantém o mundo no lugar. Aquela roulote mantinha o mundo no lugar. Toda a operação era quase perfeita, e os seus olhos cansados nos papos mas vivos nas pupilas, os seus gestos geométricos e precisos mas harmoniosos, decididos e gentis para com toda a panóplia de alimentos e instrumentos ao seu dispor, não seriam muito diferentes de um piloto de aviões, um operador de uma central nuclear, um militar em operações, um actor em shakespeare, um instrumentista em Mozart, Bach ou Paganini.

Respect.
Fiquei com tanto respeito e admiração por aquele homem.























Meu caro DT. Apesar de ter sentido com muita dor e ferimento todas as suas criticas ao meu trabalho de 6 anos, agora, ao ter digerido essas críticas e estando a ler atentamente um dos seus textos sinto uma forma profunda de gratidão pela sua austeridade britânica. Tive pesadelos de flash-back consigo a descompor-me nas suas críticas tão contundentes e sólidas; parecia que barrava as imperfeições do meu texto como pasta de fígado numa tosta holandesa e trincava tudo aquilo impiedosamente. E com uma tal fúria contida de freira transexual anglicana, que a única imagem e som que podia fazer jús ao meu despautério e desconsolo aterrado são as daquele professor sádico no album "The Wall" dos Pink Floyd.



Agora, ao ler com muita atenção o seu artigo sobre o tratamento e investigação daquela patologia terrível e medonha, e ao reconhecer nele a elegância intelectual e solidez laboriosa da argumentação, entendo o que me faltava, entendo a sua irritação perante o meu, muitas vezes auto-condescendente, descuido e imperfeição a tratar um tema que lhe é tão caro.
Sinto-me grato, tenho agora uma noção clara do que preciso melhorar. Se você, DT, tivesse sido mais condescendente e paternalista, se tivesse sido menos austero e rigoroso, se você o fosse, como eu gostaria que tivesse sido comigo para eu não ter saido daquela sala a sentir a sensação de pequenez e limitação que senti, eu não teria tido pesadelos a dormir e acordado durante estes meses, mas também não teria aprendido nada para a minha vida e fundamental para o meu progresso, ou mesmo sobrevivência, no meu ofício.


















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nota de rodapé: todo o conteúdo deste blog e este post é como de costume pura ficção, pura não, com gelo e água castelo, pois como é óbvio eu nunca seria capaz de conduzir cos copos nas principais artérias de lisboa nos dias que correm, e nunca seria capaz de admirar um vendendor das roulotes; admiro grandes homens como Mussolini, Bill Gates, Mario Soares... e nunca seria capaz de ter como fonte de inspiração e alvo de admiração um reles proletário pai de família, cuja única grandeza é poder ser explorado, enganado, e estropiado em guerras eróticamente muito excitantes, pelos Senhores dos parlamentos, das multinacionais e da comunicação social com as suas grandes pilas cor de rosa beatificadas pelo Senhor do Céu.

3 comments:

_E se eu fosse puta...Tu lias?_ said...

Independente de onde vem... parabéns por essa inspiração!

Adorei ler-te...quase que fui comer um hamburquer à roulote!

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a.carolina said...

fiquei esmagada...

não te conhecia essa dimensão de consciência social, ainda que disfarçada no meio da alucinação (deslumbrante e atraente) do costume

e o rigor e exigência a produzirem efeitos na vidinha?!...

:)

Maria Ostra said...

Bom! e hilariante!