20071012

(D)a vida dos homens infames (colecção "tudo para o lar!")

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"a sua loucura foi sempre o esconder-se da família, levar uma vida obscura no campo, ser processado, emprestar a usura e a fundo perdido, passear o seu pobre espírito por caminhos esconsos e crer-se capaz dos maiores cometimentos"

"Frade apóstata, sedicioso, capaz dos maiores crimes, sodomita, ateu até mais não poder; um verdadeiro monstro de abominação que mais valia sufocar do que deixar livre"



Vergado ao peso da mais excessiva dor, eu, empregado comercial, ouso com humilde e respeitosa confiança lançar-se aos pés de vossa majestade para implorar a sua justiça contra a mais ruim de todas a smulheres... que esperança não alimentará o desventurado que, em último extremo, hoje recorre a Vossa Majestade após ter esgotado todas as vias de boas palavras, de advertências e de considerações, para fazer voltar aos seus deveres uma mulher desprovida de qualquer sentimento de religião, de honra, de probidade e até de humanidade? Tal é o estado do infeliz que ousa fazer ressoar a sua lamentosa voz aos ouvidos de Vossa Majestade.







A tomada do poder sobre o ordinário da vida, tinha-a o cristianismo organizado, em grande parte, à volta da confissão: obrigação de fazer passar pelo fio da linguagem o mínusculo mundo de todos os dias, os pecadilhos, as faltas, mesmo que imperceptíveis, até aos turvos jogos de pensamento, das intenções e dos desejos.
O Ocidente cristão inventou essa espantosa coacção, que impôs a toda a gente, de tudo dizer para tudo apagar, de formular até as mais ínfimas faltas num murmúrio ininterrupto, exaustivo, ao qual nada deveria escapar. [...]



Ora, a partir de finais do século XVII, este mecanismo passou a ser enquadrado e excedido por outro cujo funcionamento era muito diferente. Agenciamento administrativo e já não religioso; mecanismo de registo e não já de perdão. O objectivo visado era. porém, o mesmo: revista do universo íntimo das irregularidades e das desordens sem importância.
Para este esquadrinhamento utilizam-se, e sistemáticamente, procedimentos antigos: a denúncia, a queixa, o inquérito, o relatório, a delação, o interrogatório. E tudo o que se diz é registado por escrito, acumulado, constitui dossiers e arquivos. A voz única e sem rasto da confissão penitencial é doravante retransmitida por múltiplas vozes que se depositam numa enorme massa documental e que constituem assim, pelo tempo fora como que a memória sempre crescente dos males do mundo.



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texto :
Michel Foucault in "A vida dos homens infames".


1 comment:

un dress said...

culpa e medo e medo e culpa ~

a servir um exercíCio de pOder.

uma inquisição.

sempre.

muda o meio mantém-se o FIM.

rés.vés.

rente


...



muiTo e noVo. por aqui! :)