20071025

o mosquito



começou como de costume. acordar com um zumbido e o tremido de um minúsculo ser voador a ressoar no ouvido.
adormeci de novo.
de manhã tinha a certeza de que o mosquito me havia picado. mas não o encontrei para acabar com ele. na noite seguinte voltou a acordar-me. estava maior, acho. o seu zumbido era mais forte. estava a crescer. com o meu sangue.
nunca o encontrei mas sabia que ele vivia no meu quarto.
tinha a sensação desagradável de que se o encontrasse não o conseguiria matar. talvez porque era como se fosse parte de mim, de certa maneira come se fosse meu filho . cresceu com o meu sangue, todas as noites, durante semanas, meses.
era enorme de facto. vivia debaixo da cama.
a partir de certa altura eu apenas deixava cair o braço para que ele não precisasse de sair debaixo da cama.
eu não o queria ver. a sua picada era mais uma dádiva de sangue da minha parte.
escondi-o dos meus amigos e familiares. protegia-o
de manhã ele passou a acordar comigo, e a picar-me o pescoço enquanto eu lavava os dentes e fazia a barba.
havia uma aparente telepatia entre nós.
eu estava atento aos meus prórios pensamentos não normais sobre este pequeno ser tão desagradável,
pensamentos que não ousava confessar, pois se o fizesse iria ter de escolher entre matá-lo, ou passar a mentir sobre ele,
em vez de apenas ocultar a sua existência...
era melhor assim,
iria continuar assim,
a minha curiosidade sobre até que ponto eu mesmo deixaria esta situação continuar era mais forte do que matar um pequeno ser vivo.
mas dormia mal,
e a presença de um insecto sempre na atmosfera do meu quarto não deixava de ser intimamente incómoda.
teria eu desenvolvido uma séria afeição pelo mosquito?
até que ponto poderia eu amar o meu próprio parasita?
afinal, qual o sentido da existência de mosquitos?
questão que me levou infelizmente à questão muito pouco util de "e afinal qual a razão da existência de pessoas como eu"?
que diferença essencial existirá entre nós?

talvez fosse melhor matá-lo e, com esse acto, matar também as questões incómodas que me zumbiam cada vez mais alto ao ouvido da consciência, e me faziam sentir sugado pelos meus próprios pensamentos e curiosidade.
Mas se o fizesse, se o fizesse, estaria de facto, no fundo, a alienar a última réstia de diferença que me separava dele.
A questão do mosquito, e decifrar as suas consequências, e observar a estranha simbiose que se estava a desenvolver entre nós passou a ser a razão profunda da minha existência.

No entanto, percebi depois, que todos estes pensamentos eram secundários. a questão profunda era mais simples, e mais terrível, e mais fácil de entender, e mais pacífica, e mais enigmática ainda.












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texto: versão 0.03
imagens: manipulação photoshop por versão 0.03

5 comments:

un dress said...

- tomai e bebei, isto é o meu

corpO!

falas da mais sublime forma do

amOr?





:)

Anonymous said...

I can get no sleep.


prosa poesia
&
pernas
que se abrem para os ciclos de fogo.

(adorei essa imagem)
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NARNIA said...

Zerinhos
No fundo o que tu não queres é atrair Karma ;))

_E se eu fosse puta...Tu lias?_ said...

Olhando à descarada...dir-te-ia que não existes (risos) e recomendar-te-ia um repelente forte. Sim...pq eu tapo-me toda mal ouço um suave zumbido...


parte profunda(em continuação)_
como me escondendo do que não quero saber...como fugindo do consciente aterrador...

Bom fim-de-semana;)
*************************baci

1.01 said...

Obrigado pelos todos inteligentes, sensíveis e femininos comentários.

fiquei e ainda estou a pensar em todos eles.

insomnia do espírito, vigília da alma, tremor do corpo

I.N.R.I.,
a pensar nos comentarios aprendi mais uma combinatória esotérica para a placa da cruz:

Iam (água), Nour (fogo), Ruach (ar) e Iabeshah (terra).

[ps: fight dark forces In the clear moon light Without fear...]